Grupo bipartidário do Senado quer mais rigor na compra e venda de armas
por Tatiana Teixeira
Em mais uma iniciativa sobre um dos aspectos mais polêmicos da cultura americana, os senadores John Cornyn (R-TX), Chris Murphy (D-CT), Tim Scott (R-SC) e Richard Blumenthal (D-CT) apresentaram, em 16 de novembro, um projeto para aumentar o rigor na verificação de antecedentes de compradores de armas nos Estados Unidos. Conforme o texto, estados e agências federais deverão elaborar planos para enviar seus registros para o National Instant Background Check System (NICS, ou Sistema Nacional de Verificação Instantânea de Antecedentes), informações estas que mostrarão se um indivíduo sofre alguma restrição para adquirir armas. Essa verificação não seria necessária a cada nova venda.
Os senadores Orrin Hatch (R-UT), Dianne Feinstein (D-CA), Dean Heller (R-NV) e Jeanne Shaheen (D-NH) copatrocinam o projeto, que surge na esteira de dois tiroteios em massa que comoveram o país: em Sutherland Springs, no sul do Texas, e em Las Vegas, Nevada.
Incentivos
Essas últimas tragédias voltaram a mobilizar membros do Senado. O movimento é recorrente a cada episódio dessa natureza nos EUA. Quando acontece, a classe política costuma se concentrar em medidas paliativas, diante da dificuldade de consenso entre democratas e republicanos para tratar a fundo do problema. No início de novembro, os senadores Jeff Flake (R-AZ) e Martin Heinrich (D-NM) também apresentaram um projeto para exigir das Forças Armadas que informem o NICS sobre seus réus condenados por violência doméstica.
No caso do projeto de lei de Cornyn/Murphy/Scott/Blumenthal, propõe-se a concessão de subsídios federais aos governos estaduais para incentivá-los a manter o sistema nacional atualizado sobre antecedentes criminais e histórico de saúde mental de seus cidadãos. Hoje, nem todos os estados são obrigados a fazer isso. O texto estabelece ainda sanções às agências públicas que não seguirem esse protocolo, prevendo, por exemplo, a retenção de bônus para cargos comissionados. Na verdade, desde 2008, em função de medida aprovada no Congresso e sancionada pelo então presidente George W. Bush, após o tiroteio em Virginia Tech no ano anterior, as agências federais já são obrigadas por lei a fornecer esses dados ao NICS.
Como explicou o líder da maioria republicana na Casa, John Cornyn, o objetivo é ajudar a resolver um “problema sistêmico”, melhorar um sistema “imperfeito” e “prevenir de forma mais eficaz que criminosos e agressores domésticos obtenham armas de fogo”. O senador Murphy acredita que um compromisso bipartidário nesse sentido esteja próximo. “Esse acordo vai fortalecer o sistema de verificação de antecedentes e salvar vidas”, justificou.
NRA e a força dos pró-armas
O fato é que, há anos, a bancada republicana vem conseguindo travar no Congresso debates que levem a uma ampla reforma sobre o tema. Além do fracasso de duas tentativas de uma votação sobre verificação de antecedentes em 2013, por exemplo, o Senado rejeitou duas vezes propostas para evitar que indivíduos suspeitos de terrorismo pudessem comprar armas de fogo.
O sucesso dessa barreira está, em parte, na influência do principal lobby do setor – a National Rifle Association (NRA), uma organização com mais de 5 milhões de membros – e em sua capacidade de convocação eleitoral, ao apoiar candidatos que compartilham sua agenda pró-armas (em especial dos estados rurais e do sul) e que contam com um eleitorado bastante ativista e mobilizado. Uma vitória recente foi a eleição de Donald Trump, um grande apoiador da causa e retrato do perfil médio de um afiliado da NRA – homem, branco, mais velho.
Corroborando o argumento dos grupos a favor das armas, nos últimos anos, a Suprema Corte americana considerou que o direito de possuir armas para defesa pessoal, como pistolas e revólveres, está garantido na Constituição. Estaria, mais especificamente, previsto na Segunda Emenda, que afirma que “uma Milícia bem regulada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de ter e de portar Armas, não deve ser violado”.
Tiroteios em massa
A tragédia mais recente aconteceu na Primeira Igreja Batista, que fica em Sutherland Springs. Em 5 de novembro, seu agressor, identificado como Devin Kelley, atirou contra fiéis durante o culto matinal. O ataque deixou 26 mortos e 20 feridos, em uma localidade de pouco mais de 300 habitantes. Entre as vítimas fatais, estava a sogra do atirador. Ele já havia sofrido baixa desonrosa da Força Aérea em 2014 por “mau comportamento”, após ser julgado em corte marcial por violência doméstica. A informação sobre os motivos de sua condenação não foi enviada para o banco de dados do FBI (a Polícia Federal americana). Ao comentar esse ataque, o presidente Trump disse ser “um problema de saúde mental no mais alto nível, não uma questão com as leis de armas nos Estados Unidos. Não é uma situação de armas”.
Em Las Vegas, 58 pessoas foram mortas a tiros, e mais de 525 ficaram feridas, em um festival de música country, em 1º de outubro. Do quarto de um hotel, Stephen Paddock atirou a esmo contra a multidão, usando diferentes tipos de armas. Teria se suicidado em seguida. Permanece desconhecida a motivação do mais letal tiroteio na história recente do país. O crime deflagrou uma discussão no Congresso sobre o banimento do mecanismo conhecido como bump stock, por meio do qual um rifle semiautomático pode disparar tão rápido e tantas vezes quanto uma arma automática. A própria NRA se pronunciou a favor do debate sobre “regulações adicionais” para esse acessório.
Entre outros crimes recentes que chocaram os americanos, estão o tiroteio na boate gay Pulse, em Orlando (FL), em 12 de junho de 2016, com 49 mortos; na Igreja Episcopal Metodista Africana Emanuel, a mais antiga da comunidade negra nos EUA, situada em Charleston, em 17 de junho de 2015, com nove pessoas mortas pelo supremacista branco Dylann Roof; na escola de Ensino Básico Sandy Hook, em Newtown (CT), em 14 de dezembro de 2012, com 26 mortos, entre eles 20 crianças; e na Universidade Virginia Tech, em Blacksburg (VA), em 16 de abril de 2007, com 32 mortos. E há o simbólico ano de 1999, quando os estudantes Eric Harris e Dylan Klebold tiraram 13 vidas na escola de Ensino Médio de Columbine, e de 1986, quando Patrick Henry Sherrill matou 14 colegas de trabalho em Edmond, Oklahoma City.
Cultura das armas
Pesquisa de 2015 das Universidades Harvard/Northeastern mostra que, com cerca de 265 milhões de armas de fogo registradas, os americanos são o povo com o maior número de armas per capita do mundo. Mais da metade dos proprietários tem uma, ou duas, e um terço, de três a sete. Pelo menos 14% – correspondente a 7,7 milhões, ou 3% dos americanos em idade adulta – são conhecidos como super-owners, indivíduos com entre oito e 140 armas, sendo 17 em média.
Na mesma proporção e em comparação com os demais países desenvolvidos, os EUA registram os mais altos índices de violência com armas. Mais de 38 mil americanos morreram vítima de armas, em 2015, de acordo com os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDCs, na sigla em inglês). Suicídios cobrem a maioria das mortes por armas, chegando a mais de 20 mil ao ano.
De 1966 a 2016, foram registrados pelo menos 127 tiroteios em massa nos EUA, deixando 874 vítimas. Quase todos foram cometidos por homens brancos. Apenas três a cada 130 atiradores eram mulheres.
Maioria aprova, mas não vê eficácia em leis mais rígidas
De acordo com pesquisa da Quinnipiac University realizada entre 7 e 13 de novembro, o número de pessoas que aprovam uma verificação completa de antecedentes para compra de armas atingiu um novo pico, contando agora com o apoio de 95% dos entrevistados. Entre eles, 94% disseram já ter arma em casa. Trata-se do mais alto percentual nesse sentido desde que esta enquete começou a ser feita em fevereiro de 2013, pouco tempo depois da tragédia de Sandy Hook.
Para a maioria dos americanos (59%), comprar armas ainda é muito fácil nos EUA, mas apenas 37% acreditam que essa facilidade seja a principal causa dos tiroteios em massa no país. Já 52% disseram que o maior problema é que é muito difícil conseguir tratamento mental nos EUA.
Cerca de 60% apoiam leis mais estritas em geral, e 65%, o banimento da venda de armas de assalto – outro recorde da pesquisa. Outras medidas que também receberam apoio da maioria dos entrevistados foram a limitação da venda de munição (62%), a proibição da venda de armas para pessoas condenadas por crimes violentos (91%) e a proibição da vendas de acessórios como o bump stock (74%).
Ainda assim, boa parte não acredita que leis mais duras consigam evitar tiroteios em massa, completa a Quinnipiac, acrescentando que, para 62%, os atiradores “dariam um jeito” e cometeriam esses crimes de qualquer maneira. “A cada massacre com armas nos Estados Unidos, há um apoio maior do eleitor para medidas mais estritas de controle de armas. Mas a visão cínica prevalece. Leis mais rígidas não adiantam (…) em um país com mais armas do que pessoas”, afirma o diretor-assistente da pesquisa, Tim Malloy.