A Agenda Comercial dos Estados Unidos sob a Administração Trump: A questão do déficit comercial do país
por Neusa Maria Pereira Bojikian*
Em 31 de março do ano corrente, o presidente Donald Trump emitiu uma ordem executiva instruindo o mapeamento dos “significativos” déficits comerciais do país. Pode-se dizer que esse é o marco inicial das ações em torno da política comercial da Administração Trump. O ato presidencial instrui o Secretário de Comércio e o Representante de Comércio dos Estados Unidos a emitirem um relatório exibindo não apenas os déficits comerciais do país com uma série de parceiros em 2016 mas, principalmente, o que o presidente classifica como desequilíbrios comerciais em favor de parceiros e “roubos” de propriedade intelectual.
Não se pode dizer que este será mais um relatório, já que outras agências também trabalham configurando dados relativos às práticas comerciais. Sua singularidade revela-se na mensagem transmitida, qual seja, a Administração Trump está convencida de que os termos e condições dos acordos comerciais dos quais os Estados Unidos fazem parte lhes são indiscutivelmente desfavoráveis.
O presidente Trump expressamente ordena que os respectivos titulares dos cargos mencionados acima (a) avaliem as principais causas dos desequilíbrios comerciais, tais como barreiras tarifárias e não-tarifárias; dumping; subvenções governamentais; apropriação indébita (ou, como prefere Trump, “roubo”) de direitos de propriedade intelectual; transferência forçada de tecnologia; infração de direitos trabalhistas; (b) avaliem se o parceiro comercial está de alguma forma desviando o comércio em prejuízo dos Estados Unidos por meio de leis, regulamentações ou práticas; (c) avaliem os efeitos da relação comercial sobre a capacidade de produção e a força das bases industriais e de defesa dos Estados Unidos; (d) avaliem os efeitos da relação comercial sobre o emprego e o crescimento dos salários nos Estados Unidos; (e) identifiquem importações e práticas comerciais que possam prejudicar a segurança nacional.
Sob o guarda chuva dessa ordem executiva estão sendo conduzidas as renegociações do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) – que envolve Estados Unidos, Canadá e México – e outras, como o KORUS – acordo bilateral entre Estados Unidos e Coreia do Sul. A propósito, a Administração Trump tem dito que buscará constituir um “NAFFTA”. Note-se a duplicidade da letra “F”, que corresponde às iniciais de free e fair, ou seja, livre e justo. O termo justo também não foi cunhado por essa administração; tantas outras administrações anteriores o usaram amplamente. No entanto, a atual administração parece considerar déficit comercial como sendo o oposto do dito comércio justo. Sendo assim, renegociar o NAFTA seria necessário a fim de que concessões sejam feitas até que se equiparem ao nível de liberalização praticada nos Estados Unidos. Ou seja, aparentemente os negociadores americanos sob o atual comandante em chefe dos Estados Unidos estariam buscando sobretudo uma meta agregada de saldo comercial e não abertura de setores específicos. Na carta em que Stephen Vaughn, enquanto ocupava interinamente o cargo de Representante de Comércio, enviou ao Congresso, apresentando um rascunho da negociação preliminar do NAFTA, destaca-se que “o persistente déficit dos Estados Unidos no comércio de bens com o Canadá e com o México exige que esta administração tome medidas rápidas para rever o relacionamento e responder aos desafios do século XXI.”
Para o desassossego dos defensores da ampla liberalização comercial, isso foi reiterado, em maio de 2018, por Robert Lighthizer do alto do cargo que passou a ocupar como Representante de Comércio. Para este, torna-se razoável questionar, diante de décadas de expressivos déficits em nível mundial e com a maioria dos países, se as regras de comércio são parte do problema. Na sequência, Wilbur Ross, como Secretário de Comércio, sugeriu que o México poderia manobrar suas importações, desviando o comércio em favor dos exportadores americanos e aumentando as respectivas cotas de mercado reservadas ao país. Tal questionamento e propostas possuem grande apelo ao público, uma vez que se tenta associar o déficit comercial à perda de empregos e à estagnação dos salários no país. Isso requer trabalho dobrado dos indivíduos e grupos interessados no avanço da liberalização comercial.
Com efeito, os economistas e outros especialistas associados aos mais vocais think tanks e grupos de lobbies americanos empenham-se incansavelmente em convencer os burocratas e congressistas sobre a necessidade de uma agenda comercial “construtiva, moderna e abrangente”. Significa que a renegociação do NAFTA deveria incluir: (1) novos direitos e obrigações em matéria de comércio eletrônico e armazenamento e transferência de dados digitais; (2) cláusulas trabalhistas e ambientais; (3) liberalização do setor energético; (4) regras sobre investimentos, sobretudo regras para resolução de controvérsias envolvendo investidores e Estados; (5) facilitação de comércio e regras aduaneiras; (6) serviços; (7) direitos sobre propriedade intelectual; (8) disciplinas relativas a empresas estatais; e, para atender os interesses de setores manufatureiros, como automobilístico e siderúrgico, (9) um conjunto de regras cambiais que serviria de parâmetros para outros acordos comerciais. Além disso, a política de limitar o acesso dos fornecedores estrangeiros às licitações públicas federais, como a Buy America, não caberia no perfil da agenda recomendada, principalmente porque convidaria à emulação pelos governos canadense e mexicano. O argumento é que uma agenda tal qual a recomendada renderia maiores dividendos para a competitividade americana de forma sustentável.**
Para os economistas defensores da liberalização comercial, o déficit comercial do país, que cabe notar já vem desde a década de 1970, não possui grande significado e está atrelado sobretudo aos fundamentos macroeconômicos do país, ao nível de poupança interna e ao papel do dólar e dos ativos denominados em dólar na economia mundial. Para os críticos da política de combate ao déficit comercial, Lighthizer está repetindo uma estratégia implementada contra o Japão durante a Administração Reagan, quando ainda jovem ocupava o cargo de vice Representante de Comércio e ajudava a impor ao governo japonês restrições voluntárias de exportação. Porém isso seria um equívoco, já que três décadas depois o Japão continua exibindo superávit comercial com os Estados Unidos. Além disso, o recurso unilateral que pode ser usado por meio da Section 301, normativa doméstica que permite ao governo americano impor tarifas e outras restrições comerciais sobre produtos e serviços de outros países, pode ser questionado diante do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Enquanto no âmbito das ideias as disputas ganham cada vez mais projeção, em termos concretos verifica-se que até o final do último setembro, quando se encerrou a terceira rodada de negociação entre as partes do NAFTA, os negociadores americanos ainda não tinham apresentado uma minuta de acordo propriamente, ou seja, uma proposta por escrito. Espera-se que seja apresentada na rodada seguinte. Face a isso, não só as negociações deixam de avançar como não dá para saber, por enquanto, até onde Lighthizer e sua equipe estão dispostos a colocar em prática a propalada meta de equilibrar a balança comercial do país perante as de seus parceiros.
*Neusa Maria Pereira Bojikian é pesquisadora e pós-doutoranda do INCT-INEU com apoio CAPES.
** Ver: Bergsten, 2017; Hufbauer e Jung, 2017; Schott e Cimino-Isaacs, 2017. In: Bergsten, Fred and De Bolle, Monica (Eds). A Path Forward for NAFTA. PIIE Briefing, jul 2017. Ver também Whiting, Tori. Heritage Foundation.