EUA e Alemanha: dois modelos de educação
Por Reginaldo Moraes
Em 1959, James Conant, o renomado reitor de Harvard, publicou seu famoso estudo sobre o ensino médio americano – The American High School Today. Neste instigante livrinho, Conant sublinha que 1 em cada 3 americanos chega ao ensino superior, taxa bem mais alta do que a europeia. Contudo, Conant estava longe de ser um provinciano. Conhecia a Alemanha, fora embaixador naquele país, nos anos 1950. Por isso, logo em seguida faz uma ressalva importante:
“Mas a grande maioria dos americanos não é estudante universitário no sentido europeu do termo — ou seja, estudantes que se preparam para uma profissão. Na verdade, a percentagem de jovens que se preparam para serem médicos, advogados, engenheiros, cientistas, estudiosos e professores de disciplinas acadêmicas é quase a mesma neste país como na Europa — uma porcentagem surpreendentemente pequena, aliás — algo como 6% de um grupo etário”
De fato, Conant estava indiretamente revelando que, nesses dois países, suas camadas superiores adotavam modos diferentes de defender seus nichos de prestígio e poder. Modos diferentes, com resultado final bastante similar no que diz respeito à seletividade.
Conant prefere o modo americano. Na Alemanha, diz Conant, os estudantes são classificados de modo demasiado precoce – já perto dos 12 anos são distribuídos em segmentos separados: o acadêmico e o vocacional. Isto ocorreria desde a escola elementar e média – e como direta decorrência das heranças familiares. Desse modo, diz ele, o sistema desperdiçava talentos, porque a seleção refletia critérios não meritocráticos, mas estamentais. Alguns críticos de Conant dizem que o sistema americano desperdiça de outro modo – com a evasão. E cria mais baixa-estima, subvalorizando as ocupações não “superiores”.
De qualquer modo, Conant argumenta que a escola média “compreensiva”, uma invenção tipicamente americana, não incorria no vício da seleção precoce. Garimpava melhor, digamos. No prefácio desse livro, John Gardner, presidente da Carnegie Corporation de New York, patrocinadora da obra, procurava explicar esse traço peculiar dos americanos:
“A escola média compreensiva é um fenômeno dos Estados Unidos. Chama-se compreensiva porque oferece, sob uma única administração e sob o mesmo teto, ensino secundário para quase todos os jovens de uma cidade ou bairro. Ela é responsável por educar o garoto que será um cientista atômico e a garota que quer casar aos 18 anos; o futuro capitão de um navio e o futuro capitão de indústria. É responsável por educar os brilhantes e as crianças não tão brilhantes, com diferentes ambições vocacionais e profissionais e com diversas motivações. É responsável, em suma, pela prestação de boa e adequada educação, acadêmica e profissional, para todos os jovens dentro de um ambiente e princípios democráticos que o povo americano preza ” [Gardner, in Connan, 1959, pp. IX-X].
Conant minimiza a forte e clara diferenciação da high school americana – em que muitos são chamados e poucos são escolhidos. É curioso que, em outra parte do livro, Conant menciona o componente que é decisivo para produzir tal efeito, mas não vincula as duas coisas. Esse componente é a desigualdade no financiamento das escolas. O financiamento é predominantemente local, refletindo, assim, bem de perto, a renda média do distrito. Como são poucos os corretivos, através de alocações estaduais e da união, mesmo as escolas públicas são fortemente desiguais. Basta olhar para uma escola rente ao Central Park, na Rua 66 de Manhattan, e compará-la com uma escola do South Bronx, a 15 minutos de metrô e a uma enorme diferença na renda media anual (razão de 1 para 10!). Na mesma cidade, oito ou nove estações de metrô são quase uma fronteira de classe.
Em algum momento, a pressão pela democratização do acesso ao ensino superior – ele próprio visto como porta de acesso à democratização de outros benefícios – choca-se com as possibilidades de inclusão do sistema. Em alguns países, a seleção é forte nos andares iniciais da escola. Porém, quando e onde esta seleção precoce se fragiliza, parece restar uma solução preservadora da desigualdade, da hierarquia: a diferenciação no nível superior, em que se constrói a educação dos 5% dos “de cima” e a educação superior “para os filhos dos outros”. Alguns países fazem a filtragem em um momento, a educação elementar e secundária. É o caso da Alemanha. Outros a fazem no superior, com a hierarquização, criação de um ensino superior “tipo B”. É o caso da França e dos Estados Unidos.
O mesmo parece ocorrer com relação à formação profissional, mais estritamente, para a formação das profissões “médias”. A Alemanha as concentra no ensino médio e vocacional. EUA e França remetem esse problema para escolas superiores de “segunda linha”, construídas a partir das escolas secundárias – os Junior Colleges americanos (depois Community Colleges) nascem praticamente dentro das high schools, no começo do século XX, aproveitando suas instalações, seus professores, seus estudantes. Na França, as STS (Sections de Technicien Supérieur) fazem algo similar, escolhendo, em cada região, os liceus capazes de sustentar esse “segundo andar”, profissionalizante.
O caso americano é particularmente interessante, pela sua aparente promessa de “igualdade”. A escola média “compreensiva”, que não discrimina, hierarquiza ou seleciona é algo difícil, raro. É quase uma ideia reguladora, como o estado de natureza rosseuaneano – aquele que certamente não existe, talvez nunca tenha existido e provavelmente nunca existirá. É volátil, como certos elementos químicos que sobrevivem apenas em condições especiais de laboratório. Mesmo quando instituída e solidamente instalada no ideário de uma sociedade, como a americana, a escola média “compreensiva” logo é empurrada para uma diferenciação de fato. Um dos resultados do processo histórico de acomodação é a emergência de um setor de escolas médias privadas de elite. Um outro efeito (talvez complementar ao primeiro) é uma diferenciação no interior mesmo do sistema público, com escolas de distritos ricos e escolas de distritos pobres. Essa segmentação é mais fácil quando financiamento e gestão são assim descentralizados e as politicas de uniformização ou nivelamento são débeis e têm pouco eco social.
Mas, nos Estados Unidos, o lado mais forte da desigualdade de acesso se transfere para dentro do sistema de educação superior – pela estratificação das instituições e cursos, estratificação que se estabelece, sobretudo, a partir da renda, isto é, pelo modo como o gasto em educação é efetivamente distribuído. E esse gasto deve ser entendido em dois sentidos. Um deles é o gasto público – financiamento desigual das escolas e cursos, subsídio direto ou indireto às escolas. O outro é o gasto privado, basicamente, a renda das famílias para pagar escolas desiguais.
Sessenta anos depois do ensaio de Conant, ele continua válido: os caminhos podem ser diferentes, e são, mas os resultados, nem tanto. Países que ensaiam reformar seu sistema ganhariam muito estudando as vantagens e desvantagens de cada caso, bem como as raízes que os ligam às peculiaridades de seus sistemas sociais.
por Reginaldo Corrêa de Moraes
Originalmente publicado em: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/reginaldo-correa-de-moraes/eua-e-alemanha-dois-modelos-de-educacao, em 27/07/2017.