As Consequências da Oferta de Xisto para a Indústria nos Estados Unidos
Panorama EUA, vol. 3, no. 7, outubro de 2013
por Solange Reis e Carolina Loução Preto
A produção de gás nos Estados Unidos bateu recordes nos últimos cinco anos, impulsionada principalmente pela ampla exploração de reservas não convencionais. O emprego recente de tecnologias inovadoras, como fratura hidráulica e perfuração horizontal, permitiu a extração de gás e petróleo de xisto em escala comercial. Associados aos avanços obtidos na exploração em águas profundas, os ganhos recentes afastam o pessimismo que marcou o setor petrolífero nas três décadas finais do século passado. Tal evolução no setor de energia vem impactando a economia do país de forma mais ampla, sendo especialmente relevante para a recuperação da força industrial.
Desde meados dos anos 70, as previsões sobre a produção interna de hidrocarbonetos eram marcadas por declínio, escassez e alta de preços. A oferta doméstica de gás natural, por exemplo, era limitada e os preços voláteis. Quanto ao petróleo, a situação era de crescente dependência externa, inclusive de países e regiões politicamente turbulentos. Contudo, resultados obtidos com inovação em tecnologia nos últimos anos têm levado analistas, governo, corporações e mídia a falar em independência energética e revolução da ordem global de energia.
Pelo fato de o petróleo ser uma commodity global e a demanda estar aquecida, o incremento da produção doméstica nos Estados Unidos não repercutiu em menor preço do barril no mercado mundial. O mesmo não se aplica ao gás, que possui dinâmica de comércio mais regionalizada devido às restrições de transporte. A regionalização do mercado, somada aos impedimentos legais sobre exportação de recursos estratégicos, contribuiu para a redução drástica no preço doméstico do gás nos últimos anos. Em 2008, o produto chegou a custar US$ 12 por milhão de BTU (Unidade Térmica Britânica) nos Estados Unidos, contra uma variação entre US$ 3 e US$ 4 por milhão de BTU no ano passado.
As consequências econômicas do boom de xisto não se limitam à expansão no setor petrolífero[1]. Em todo o país, a queda no preço do gás natural resultou em economia de gastos com eletricidade para consumidores residenciais, que podem destinar o valor economizado para o consumo de outros serviços e produtos. Além disso, a redução das importações de petróleo e gás tem contribuído para diminuir o déficit comercial do país. Em fevereiro desse ano, o volume de petróleo importado foi o mais baixo desde 1996, sendo o principal responsável pela queda de 11% no déficit da balança comercial, em março.
Entre os principais efeitos para outros setores produtivos, destaca-se a percepção sobre ganhos de competitividade industrial. A oferta de gás relativamente barato favorece indústrias intensivas em energia como as que produzem alumínio, aço e vidros.
O benefício, entretanto, é ainda maior para as indústrias petroquímicas e de fertilizantes que utilizam o combustível como fonte de energia e matéria-prima. Segundo estudos, o gás natural pode representar cerca de 70% dos custos envolvidos na produção de fertilizantes e 25% na fabricação de plásticos.
O boom de xisto tem garantido oferta barata de insumos muito utilizados em refinarias e na indústria petroquímica. Líquidos como propeno, butano e etano são obtidos após o processo de refino do gás natural. O propeno e o butano são usados na fabricação de combustíveis. A partir do etano, se produz o etileno, que é matéria-prima para a fabricação de plásticos e outros produtos. Tomando como exemplo o etano, seu preço caiu de aproximadamente 80 centavos de dólar por galão, no início de 2012, para aproximadamente 23 centavos no final do mesmo ano.
Alguns fabricantes de metais têm sido ainda mais favorecidos. Além de pagar menos pela eletricidade e pelo gás que, em alguns casos, é usado como insumo, seus produtos tiveram a demanda aquecida. Isto porque o crescimento do xisto aumentou a compra de aço e metais pelas empresas que produzem equipamentos para a própria atividade de produção de distribuição de gás e petróleo.
Outro segmento produtivo beneficiado é o de fabricação de turbinas para usinas movidas a gás. Muitas termoelétricas a carvão estão encerrando suas atividades ou substituindo este mineral pelo gás natural. Em 2011, a Siemens construiu uma planta no país para produzir grandes turbinas de geração de eletricidade a partir do gás.
Além dos impactos econômicos, a transformação da matriz energética reduz as emissões de gases de efeito estufa no país, já que a combustão do gás é menos poluente do que a do carvão. Porém, o resultado ambiental para o mundo é ambíguo. Enquanto as emissões nos Estados Unidos diminuem, o excedente doméstico de carvão é direcionado para as exportações, contribuindo para aumentar a poluição global. Entre o primeiro trimestre de 2007 e o de 2013, o volume de carvão exportado subiu de 11,1 milhões de toneladas curtas (medida usada nos Estados Unidos) para 31,8 milhões de toneladas curtas.
A melhora nos níveis de produção industrial gera investimentos estruturais, que produzem efeitos econômicos mais duradouros do que a extração de recursos minerais. Isto porque os setores extrativos são menos intensivos em mão de obra e a duração de suas atividades está inversamente relacionada ao ritmo de exploração das fontes não renováveis.
Entre os pontos positivos da correlação do gás de xisto com a indústria doméstica, há destaque para a geração de empregos. No ano passado, economistas do CitiGroup estimaram que o crescimento da produção doméstica de gás e petróleo, associado às atividades econômicas resultantes dessa expansão, geraria cerca de 3,6 milhões de empregos nos Estados Unidos até 2020. A crença de que a expansão da oferta doméstica de energia vai ajudar o segmento industrial a gerar empregos, no entanto, não é consensual. Outras análises preveem impacto menor, com base no argumento de que energia é um custo marginal para a maioria das indústrias.
Apesar do debate, impera a percepção de que o cenário de baixo custo da energia já se reflete em vantagem competitiva na comparação com outros países industrializados. Hoje, os gastos com energia por empresas na Alemanha e na França são quase três vezes superiores aos das companhias nos Estados Unidos. No Japão, a diferença é ainda maior.
Diante desse quadro, crescem os projetos de expansão e construção de instalações industriais nos Estados Unidos, revertendo a tendência de declínio da última década. Segundo analistas, o país vinha perdendo espaço para a concorrência de nações como a China nos últimos quinze anos. Em 2000, os Estados Unidos foram responsáveis por 19% das exportações globais de produtos manufaturados, uma participação que caiu para apenas 11% em 2011. No mesmo período, os manufaturados chineses passaram de 7% para 21% das exportações mundiais, com a China assumindo a liderança global. A perda de mercado dos Estados Unidos se refletiu na oferta de trabalho. Hoje, cerca de 12 milhões de pessoas são diretamente empregadas pelo setor manufatureiro, contra 17 milhões vinte anos atrás.
Renascimento da indústria
Entre 1998 e 2004, várias empresas de fertilizantes encerraram suas atividades, comprometendo praticamente a metade da capacidade produtiva do país no segmento. Nesse período, muitas instalações foram transferidas para países com menor custo de gás. Da década de 90 ao início dos anos 2000, a indústria petroquímica também passou pelo processo de transferência de produção. Há apenas três anos, a decadência do setor era evidente e empresas como a Dow Chemical se voltaram para países do Oriente Médio.
O momento atual marca uma inversão dessa dinâmica. Segundo o secretário de Energia, Ernest Moniz, a revolução de xisto desencadeou o aporte de aproximadamente US$ 100 bilhões em investimentos na capacidade industrial do país nos últimos seis anos. De acordo com a Dow Chemical, 120 projetos industriais estão sendo construídos ou planejados, ainda que parcialmente, por conta da oferta de gás a custo mais competitivo.
Em 2012, a Orascom Construction Industries anunciou planos para a construção de uma planta de US$ 1,4 bilhão no estado de Iowa. Segundo a companhia, essa será a primeira indústria de fertilizantes de larga escala inaugurada nos Estados Unidos em 25 anos. Outra empresa do segmento, a CF Industries, planeja gastar US$ 2 bilhões até 2016 para expandir sua produção local. No setor petroquímico, a Dow Chemical e a Chevron Phillips Chemical Company anunciaram que pretendem construir plantas em estados como Texas e Louisiana, que concentram grandes reservas de xisto. Já a companhia Metanex transferiu uma unidade de produção de metanol, do Chile para a Louisiana. De acordo com a empresa, gastos com a realocação serão compensados em menos de quatro anos, caso o preço do gás mantenha-se em torno de US$ 4 por mil pés cúbicos de gás.
Além disso, análises mais otimistas argumentam que a expansão de indústrias básicas, como a de plástico, pode ter o efeito de atrair outros elos na cadeia de valor para os Estados Unidos. Um exemplo é a Dow Chemical, que está investindo US$ 4 bilhões na construção de plantas de etileno, propeno, cloro e herbicidas. As instalações de etileno e propeno produzirão compostos usados na fabricação de produtos diversos, como adesivos, embalagens plásticas, selantes, colchões e shampoos. Segundo os especialistas, a produção doméstica de bens como brinquedos de plástico, por exemplo, também poderia ser estimulada por essa dinâmica.
O cenário de transformações começa a preocupar industriais europeus. No ano passado, as empresas alemãs Bayer e BASF mostraram inquietação com a previsão de perda de competitividade para concorrentes dos Estados Unidos. Para seus representantes, o problema deriva principalmente dos crescentes preços da energia no mercado europeu. Especialistas afirmam que o custo elevado de desativação de uma planta na Europa torna improvável a transferência de ativos físicos para os Estados Unidos. O cálculo, no entanto, pode mudar à medida que as instalações europeias envelhecem e a demanda por seus produtos cresce em outras regiões.
As corporações que já investiram nos Estados Unidos esperam que a oferta de gás barato não seja um fenômeno temporário. A incerteza quanto à manutenção de baixos preços ainda é um dos fatores que restringem o potencial de crescimento industrial do país. Parte dos executivos se preocupa com a possibilidade de reversão da tendência de queda, relembrando a instabilidade recente dos preços. A expectativa do governo, entretanto, é a de que o preço do gás continue abaixo de US$ 5 por milhão de BTU nos próximos dez anos, já descontado o efeito da inflação.
Dentro de alguns anos, a vantagem competitiva dos Estados Unidos poderá ser desafiada pelo desenvolvimento do gás de xisto em outros países. Embora as reservas de xisto sejam mais bem distribuídas geograficamente no mundo do que os depósitos convencionais, evoluções fora da América do Norte ainda vão demorar. Segundo técnicos da Agência Nacional de Petróleo, a produção de recursos de xisto no Brasil não deve acontecer em menos de dez anos. Mesmo assim, tudo depende de estudos e análises que comprovem a viabilidade do subsolo. Demora semelhante se aplica a outros países, como a China, e principalmente aos integrantes do bloco europeu, onde preocupações ambientais, maior densidade populacional e reservas menores devem dificultar a atividade de xisto.
A controversa técnica de fratura hidráulica implica injeção de compostos químicos e de enormes quantidades de água pressurizada no subsolo. Segundo ambientalistas, a tecnologia pode provocar abalos sísmicos e contaminar aquíferos. Com essas incertezas, alguns estados e cidades nos Estados Unidos impuseram moratórias temporárias à exploração. A França, por sua vez, proibiu a técnica em solo nacional desde 2011.
Diante de toda essa conjuntura, no que tange à oferta de energia, os setores industriais nos Estados Unidos não se preocupam apenas com a concorrência externa. Outro receio é com os interesses antagônicos de setores produtivos dentro dos Estados Unidos, principalmente do próprio segmento petrolífero.
Indústria vs. exportações
A alta demanda global e o nível reduzido de preço nos Estados Unidos geram possibilidades de ganhos mais altos para as petrolíferas fora do país, principalmente na Ásia e na Europa. Assim, o choque de interesses contraditórios entre setores econômicos nos Estados Unidos engendra um debate envolvendo o governo federal, que possui papel decisivo como regulador para exportação de recursos de energia.
Grupos industriais se preocupam com a preservação da oferta do gás para o mercado doméstico. As empresas acreditam que o crescimento das exportações resultará em aumento dos preços internos, afetando a competitividade local. O presidente da Dow Chemical, Andrew Liveris, encabeça uma campanha pública contra a liberação de licenças de exportação. De acordo com o CEO, as vendas externas podem ameaçar o sonho de renascimento industrial.
Esse ano, a Dow Chemical cancelou sua filiação na National Association of Manufacturers, principal associação do setor manufatureiro dos Estados Unidos. O motivo teria sido divergências com outros membros, principalmente com a ExxonMobil, sobre a destinação adequada para o gás doméstico.
Em contrapartida, o setor petrolífero pressiona o governo a acelerar a aprovação de licenças de exportação. Exportadores alegam que o nível de preço doméstico está reduzido a ponto de ameaçar a continuidade das explorações de gás de xisto, pois o baixo retorno financeiro já não compensa os investimentos elevados na atividade. Outro argumento é evitar a perda de mercado europeu e asiático para o Canadá, que tem planos de construir terminais de exportação na costa pacífica.
Há quem diga que o cenário pró-exportação seja fruto de especulação. Alguns estudos indicam que as perspectivas, principalmente para o gás de xisto, foram artificialmente potencializadas pelo setor petrolífero com ajuda de Wall Street. A analista Deborah Rogers alega que os números exuberantes foram estimulados por agentes financeiros e indústrias do setor para atrair investidores, como fundos de pensão[2].
Para citar apenas um exemplo, operadoras de menor porte recorreram ao Volumetric Production Payment (VPP). Esse mecanismo permite que empresas do setor de petróleo e gás com baixa capacidade de alavancagem recebam investimentos adiantados em troca de uma parcela da produção futura. A fim de atender a metas de produtos financeiros como esse, gerou-se uma superprodução frenética de gás no país.
Quando os preços domésticos do gás natural começaram a cair drasticamente, a partir de julho de 2008, as pequenas operadoras viram-se obrigadas a vender seus ativos para empresas maiores por um valor baixo. Evidentemente, essas transações também foram intermediadas por grandes bancos.
Com o preço de venda em queda livre, eventualmente inferior ao custo de produção, as grandes operadoras encontraram mais embasamento para forçar o governo a liberar as exportações para mercados altamente lucrativos, como o asiático e o europeu. Para o especialista Kurt Cobb, esta seria a estratégia por trás da exuberância do gás de xisto[3].
Não è à toa que projetos bilionários para terminais de liquefação de gás aguardam a liberação do Departamento de Energia (DOE, na sigla em inglês). A legislação doméstica confere ao Executivo a autoridade para vetar licenças de exportação de gás e petróleo para países que não tenham acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Nesses casos, o DOE deve conduzir uma análise para avaliar se as exportações solicitadas são compatíveis com o interesse nacional.
Até o momento, a administração Obama aprovou apenas três pedidos de permissão. A última autorização, em agosto, foi para a construção de um terminal em Lake Charles, no estado da Louisiana. A licença permite que até 2 bilhões de pés cúbicos de gás sejam transportados diariamente para Japão e países europeus, entre outros. Duas outras permissões foram dadas a um terminal na Louisiana, no início de 2011, e para uma planta no Texas, em maio último. Por volta de 2016, os três terminais juntos terão capacidade para exportar cerca de 5,6 bilhões de pés cúbicos de gás por dia. No ano passado, a produção doméstica alcançou quase 30 bilhões de pés cúbicos.
Outros quinze projetos esperam por liberação federal. Caso todos sejam aprovados, o potencial de exportações equivalerá a mais de um terço do consumo interno de gás natural. Segundo análises, quando combinadas à projeção de aumento do consumo do combustível por automóveis e indústrias domésticas, as vendas externas elevarão o preço interno do gás. Um relatório do DOE em dezembro de 2012, no entanto, concluiu que mesmo exportações irrestritas de gás liquefeito teriam um efeito modesto nos preços domésticos, o que beneficiaria a economia como um todo. A expectativa do governo é que a alta seja de 3% a 9%, e não de pelo menos 100%, como estima o alarmado segmento industrial.
Construir terminais de liquefação requer investimentos elevados e adequações técnicas complexas, sendo improvável que os proponentes consigam atrair os recursos financeiros necessários. É possível que o governo leve em conta essas restrições, bem como os argumentos das manufaturas de que a expansão de indústrias básicas, como a de plástico pode catapultar outros segmentos industriais.
Com tamanha incerteza sobre a origem e o futuro do xisto, parece ainda mais prematuro fazer afirmações sobre a dimensão do impacto do aumento da produção doméstica de energia no recrudescimento industrial dos Estados Unidos. Face à complexidade do tema, inúmeros fatores não elencados pelos setores envolvidos têm capacidade de interferir no processo. A maior probabilidade é que o DOE não aprove todos os pedidos de licença de exportação e busque uma equação para equilibrar interesses setoriais divergentes, ao mesmo tempo em que potencializa a chamada revolução energética para que o país recupere sua força econômica.
[1] Setor petrolífero compreende as atividades relacionadas à exploração de petróleo cru e gás natural, bem como o processamento de produtos derivados.
[2] ROGERS, Deborah. Shale and Wall Street: was the decline in natural gas prices orchestrated? Energy Policy Forum, Februrary 2013.
[3] COBB, Kurt. Oil and gas industry uses deceptive energy independence message to push U.S. exports. Resources Insights, October 14, 2012.